Os Fabelmans

Este é o último da série de posts sobre os indicados a melhor filme no Oscar deste ano, com breves comentários conforme as categorias às quais foram indicados. Só que… este aqui é um pouquinho diferente.

Tá, posso começar só apontando as indicações, depois se algum leitor quiser, pode continuar texto abaixo, porque o buraco é mais embaixo, porque daí o relato vira aquela coisa, assim, bem “spielberg” mesmo, meio sentimental, pessoal e talvez não interesse a mais ninguém exceto à minha pessoa de memória fugaz futura.

Este filme foi indicado a:

Melhor roteiro, escrito pelo próprio Spielberg e o também produtor Tony Kushner; falando no geral, conta sobre o jovem aspirante a diretor de cinema Sammy e sua relação com os pais e a própria realização da sétima arte, sendo que grande parte desse relato é a exposição das experiências do próprio Spielberg. Nota 05, principalmente por incluir aquele diálogo real com o John Ford (David Lynch).

Ator coadjuvante para Judd Hirsch, que faz uma figura inusitada, um tio Boris distante que reaparece após a morte da mãe, com um jeito bem particular de se expressar e lançar na lata ao jovem que sempre existirá um certo embate entre a família x a arte. Nota 03.

Atriz principal, para Michelle Williams, que faz a mãe do jovem Sam, Mitzi, uma ex-pianista que passou a se dedicar à família, mas nutre uma relação com o “tio Benny” (Seth Rogen) e passa por crises e depressão, inclusive adoção de um macaco. Nota 04, principalmente pelo falso sorriso de felicidade em uma casa nova.

Desenho de produção ou direção de arte, que inclui a reprodução de todos os objetos de cena da época, automóveis, câmeras e “equipamentos de edição”, a reconstituição de um lar real, a escola, a praia. Nota 03.

Trilha sonora original, delicadas peças de piano ou notas intensas, nota 03. Não adianta, aqui é como a categoria de Direção. Eu posso adorar as outras trilhas, entender um pouco como contribuem para o projeto ter se tornado o que é, cada uma com suas peculiaridades e belos tons, mas John Williams é como Steven Spielberg, é mestre desta arte. Claro que jovens podem “concorrer”, mas honestamente, na verdade, na verdade, eles são os que todos os outros vão admirar, são lendas, mitos. Williams já está velhinho e logo não fará mais coisa alguma, mas não podia dizer “não” para Spielberg, que foi super mencionado e homenageado pelos discursos do DGA e de tantos outros, em tantos outros meios. É o diretor que sabe o que quer, sabe o que faz, pode até escorregar aqui e deslizar ali – precisava ser tão explícito na “descoberta” de Sam sobre a traição da mãe? Mas tem seu estilo (e eu também sou brega igual a ele), sabe como acariciar nosso coração que ama o cinema, como tirar da gente aquele suspiro ou aquela lágrima. Uma estrelinha a mais por “ajeitar” a câmera após a conversa dos quadros com o “maior diretor de cinema” da época. Nenhum dos dois vai levar estatuetas, e nesse caso nem é que “eles já tem as deles”, eles simplesmente não precisam de quaisquer outros reconhecimentos.

Claro, “Os Fabelmans” foi indicado a melhor filme.

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Pois bem, agora, eu prometi que ia cavar buraco mais embaixo.

Desde que me conheço por gente, minha vida é acompanhada pelas ideias de Steven Spielberg. Seja em filmes que ele dirigiu, que ele produziu, ou naqueles que ele elogia, como “Lawrence da Arábia” que foi o que realmente o deixou “pra baixo”, quase desistindo de ser diretor, achando que nunca faria algo igual. Aos 10 anos de idade meu sonho era trabalhar com ele, comecei a escrever um “roteiro” (ainda não sabia o que eram roteiros na época) que misturava desenhos animados, muitos efeitos, romance, trama de mistério e aventura.

Quando eu morava em um lugar isolado no Japão e estudava em casa, eu enviei por correio uma fita K-7 para ele, que algum responsável pelos fãs deve ter visto e enviado uma cartinha de resposta com foto autografada – e eu fiz tudo errado! Deveria era ter simulado uma conversa gravada, em que eu exporia todos os filmes que eu “supostamente” teria feito com ele.

Na minha imaginação, Spielberg é o meu padrinho imaginário, aquele que me acolhe e me apoia nas várias intenções de cinema, me ensina e me dá respaldo, pra que eu não sofra da miséria e pobreza das minhas próprias elucubrações depressivas, que me protege desses perigos de auto-morte, pra quem eu corro quando meus “pais reais” não me entendem.

Daí ele me vem com esse filme tão pessoal (dizem que o próprio chorou diversas vezes durante as filmagens), tão único, compartilhando com a gente, para que (re)vivêssemos todos os encantamentos pelo cinema que o formaram desde bem jovem. Damien Chazelle quis fazer uma homenagem ao cinema com “Babilônia”, com aquela montagem estudantil no final?! Bah. Esta sim é que é uma homenagem de verdade, de alguém que nutre verdadeiro amor pela sétima arte. É engraçado quando pequenino o pai, mais lógico, explicando o funcionamento da máquina, enquanto a mãe, mais artista, explica sobre a ilusão mágica. Com o passar dos anos, o cinema não é só um modo de enfrentar seus medos, de se desafiar – os trens, os caras que fazem bullying na escola -, é a sua linguagem, é seu sonho, sua arte, seu cerne – não é só um hobbie. Este é o rapaz que já vê através das lentes, e não por menos é bela a cena em que revela à mãe saber do caso com o “tio” tão próximo da família, num armário (ecos de E.T.?) projeta as imagens, é através do cinema que ele se expressa.

Eu mesma lembrei de já ter lido em algum lugar como ele fazia vários vídeos caseiros com as irmãs, não largava a câmera quando criança. E pouco tempo depois de eu mesma ter acesso a uma câmera de vídeo, eu ter ouvido no carro dos meus pais que eu não tinha talento para aquilo, se tivesse, já teria demonstrado (acho que eu tinha uns 16 anos). Às vezes os pais podem ser bem cruéis com os filhos, sem nem perceber. Quando o próprio pai, que tinha um gênio especial em exatas, insiste no pensamento que o filho seguirá outro caminho, deve ter doído. Spielberg só decidiu fazer esse filme após a morte dos dois pais, talvez para evitar escrutínio público de pessoas tão próximas e queridas. Mesmo passado tanto tempo, não seria fácil para a mãe revisitar toda a depressão e a difícil decisão de finalmente deixar o esposo.

Doeu em mim, nesta atualidade, fiquei baqueada, ao perceber que mais do que com Spielberg passei a me identificar mais com sua mãe. Por essa eu não esperava. Mitzi deixa sua arte para cuidar da família, mas era claramente algo que ela adorava, o piano, a música (e aquela dança sob “holofotes” dos faróis dos carros realmente ficou linda). O emprego que deixei em prol da minha família, especificamente minha filha, não era algo que eu amava, pelo contrário, eu já queria deixá-lo há algum tempo e foi até um alívio. Mesmo assim, eu me identifico. Tantas vezes eu já não desisti dos sonhos de cinema, em tantas instâncias da minha vida, por diversas circunstâncias. E Mitzi até conseguiu renunciar à sua arte, mas não pôde fazer o mesmo pelo seu verdadeiro amor. Ela lutou, mas a depressão estava tomando conta. E quantas, quantas vezes, eu não senti a mesma coisa antes? No meu caso é mais “leve”, mas quantas vezes na minha vida eu me encontro sem vontade de viver, sem forças para coisa alguma, querendo me deixar ficar deitada no escuro até que a vida passe? Quantas vezes a gente acha que consegue, que dá conta, que vai melhorar, se iludindo?

Dizem que dar valor às pequenas coisas é importante. Pode ser verdade. Acredito mesmo, acredito que somos melhores quando sentimos gratidão, sou budista, afinal. Mas existem momentos em nossa vida em que é tão difícil de ver, não é? E nos parece ser um ato tão egoísta não dar valor à vida, você tem onde morar, o que comer, tem físico saudável para trabalhar, para pensar, e tem tanta gente por aí afora com menos condições, em situações piores, não é mesmo? Mas existem momentos inexplicáveis. Talvez só quem já tenha passado por isso saiba.

Eu gostaria de dizer que Spielberg é em quem me espelho, que fui como ele, que sabia e sempre soube o que queria, foi atrás e fez. Sabe quando ele está estudando e admite ao pai que precisa é trabalhar, botar a mão na massa e não só ficar na teoria? Eu gostaria de dizer que fui essa jovem. E que fui bem sucedida, que trabalhei muito com o que amo, que ganhei Oscar e casei com minha celebridade alma gêmea. Olho pra trás e sinto como se eu só tivesse desistido, vez após outra. Que só deixei tudo no pensamento e não na ação (outro ensinamento budista, a prática é mais sábia que tão somente a razão). Não é o retrato que eu queria, mas foi o que o cinema me trouxe.

Aliás, acho que já devo ter desabafado aqui antes, o cinema na minha vida é muito maior do que eu espero, sempre. Conversa comigo me trazendo cenas, frases, pensamentos, sensações, sentimentos, em momentos propícios, o que eu preciso naquele dado instante. Mais uma vez, o cinema acerta. E quer saber? Se eu tivesse escolha, eu faria como Mitzi e deixaria tudo, eu iria com meu amor verdadeiro. Só espero que você aí nesse mundão afora, que ainda tem tempo e escolhas, consiga seguir pelos caminhos mais sábios, mais do que eu aqui pra lá dos 40, que já não danço mais sozinha e ainda estou ajustando a paisagem no enquadramento.

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